Política

Fechar? Alvo de Bolsonaro, Ceitec é único na América Latina a fazer chips

O presidente Jair Bolsonaro editou decreto na quarta-feira (16), que autoriza a liquidação do Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), empresa que ficou conhecida como “estatal do chip do boi”. Mas essa alcunha chega a ser pejorativa perto da capacidade técnica do Ceitec: a fábrica é a única da América Latina capaz de produzir chip no silício, do começo ao fim.

Ali são feitos diferentes tipos de chips, etiquetas eletrônicas e sensores, os usos mais populares são as etiquetas do sistema de pagamento automático de pedágios e estacionamentos, e a identificação de produtos, gado e medicamentos por RFID (circuito integrado que não requer bateria).


Milhares de chips desse tipo, feitos com tecnologia 100% nacional, já foram vendidos pela empresa.


“Temos sofrido bastante com essa história do chip do boi, é meio pejorativo. As pessoas precisam saber que menos de 1% do nosso faturamento vem disso”, explica Rodrigo Palmieri, especialista em tecnologia eletrônica avançada e gerente do Ceitec. “Temos capacidade de pegar o silício virgem e nele crescer as estruturas e fazer o processo físico-químico necessário para no final construir um circuito integrado que funcione.”

O silício é um material fácil de achar, sendo considerado o segundo mais abundante na crosta terrestre, atrás apenas do oxigênio. Ele é utilizado nos principais componentes eletrônicos que conhecemos atualmente, sendo a base para processadores de computadores, tablets e smartphones. Atualmente, as empresas brasileiras só fazem o capsulamento dos chips que são produzidos em empresas na Ásia, Europa ou Estados Unidos.

“Mundialmente, tem uma empresa que projeta, uma que produz, outra que testa. Essa característica do Ceitec de desenvolver o projeto, produzir e testar é única no mundo. O Ceitec teve que abranger várias áreas”, diz Julio Leão especialista em computação e porta-voz da Associação dos Colaboradores do Ceitec, que faz campanha para que a estatal não seja encerrada.

Diretor da Sociedade Brasileira de Microeletrônica, Jacobus Swart também defende que não temos outros laboratórios completos no país nesse sentido. “O Brasil não pode ficar fora dessa área. Tecnologia é cada vez mais importante para a economia e sociedade. Renunciar a isso seria abrir mão de um futuro promissor para o país”, afirma.

Tilt questionou o Ministério da Ciência e Tecnologia sobre os possíveis prejuízos relacionados ao encerramento do Ceitec, mas até o momento não obteve retorno. Assim que o tiver, essa reportagem será atualizada.

De acordo com a secretaria-geral da Presidência da República, estudos mostraram que a liquidação da empresa seria a “alternativa adequada” para otimizar o gasto público e representará uma redução de despesas de R$ 80,5 milhões.

O Ceitec depende de recursos do Orçamento federal para bancar despesas de custeio e com pessoal. A estatal registrou prejuízo de R$ 23,9 milhões em 2017, R$ 49,6 milhões em 2016, e R$ 31,2 milhões em 2015.

De acordo com Júlio Leão, esse prejuízo seria revertido em pouco tempo. “O amadurecimento de uma empresa de semicondutores é curva longa, na casa dos 20 anos. Saímos de R$ 9 milhões de faturamento para R$ 13 milhões em 2020. A previsão estimada para 2021 era de R$ 20 milhões. Até 2024 poderíamos empatar o quanto a gente custa e consegue faturar”, diz.


Projetos reconhecidos internacionalmente
Um projeto recente do Ceitec foi bastante elogiado pela comunidade internacional de tecnologia. A estatal conseguiu desenvolver um chip logístico que possui um quarto da área do chip original que hoje são utilizados nos cartuchos das impressoras HP.


Uma lâmina de silício possibilita a fabricação de 40 mil chips em uma lâmina de 8 polegadas. Com a evolução desenvolvida pelo Ceitec, será possível produzir 120 mil chips em uma lâmina.


“Com isso, conseguimos reduzir custos de fabricação e o custo final. Isso vem sendo desenvolvido há dois ou três anos, estamos fazendo os últimos ajustes para fazer o lançamento”, explica Eduardo Zenzen, superintendente da fábrica.


Outro projeto de sucesso foi feito para uma das maiores mineradoras do Brasil. “Conseguimos desenvolver tags para serem colocadas em vagões e isso gerou uma economia de R$ 1 milhão para a empresa, porque o valor da tag caiu de R$ 50 para R$ 18, com a versão nacional”, conta Palmieri.


Na área da saúde, a estatal também desenvolveu sensores eletroquímicos que facilitam na detecção precoce de algumas doenças como o câncer e até mesmo a covid-19.


Chip para passaporte pode parar
Um dos projetos mais promissores do Ceitec diz respeito à segurança nacional: o chip para passaporte, composto por um microprocessador, que grava as informações do viajante, e um software embarcado, que provê as funcionalidades do e-passaporte.


O produto, chamado CTC21001, já recebeu a certificação internacional de segurança Common Criteria, essencial para a produção e comercialização do produto. “Trata-se de um assunto de segurança nacional, não é recomendável que se compre esse tipo de chips de empresas do exterior”, explica Palmieri.


Segundo Julio Leão, se a fábrica for fechada, vai comprometer um acordo feito com a Casa da Moeda, que apoiou o projeto e se comprometeu a comprar o produto quando ele fosse desenvolvido. “O Ceitec deixa de faturar R$ 15 milhões por ano pelo não cumprimento desse acordo”, afirma ele.


Tilt entrou em contato com a Casa da Moeda, que confirmou que “foi firmado um acordo de cooperação técnica/convênio que tinha o objetivo de desenvolvimento conjunto de um chip compatível para suportar tecnologias de passaportes”, mas que “as soluções técnicas e comerciais não foram concluídas e/ou aprovadas, segundo as exigências de segurança e qualidade exigidas pelo cliente, neste caso a Polícia Federal”.

Na mesma nota, o órgão disse que não compra o chip separado, mas a capa do passaporte contendo o chip homologado e antena embarcados. “Assim, o chip é adquirido pelo fornecedor das capas de passaporte, conforme as exigências e requisitos técnicos do cliente e regras de mercado”.


Possibilidade de produção para o 5G
Os responsáveis pela área de tecnologia do Ceitec defendem ainda que a empresa poderia ser bastante estratégica para dispositivos do 5G, pois pode produzir chips a partir de nitreto de gálio —um semicondutor que substitui o silício na tecnologia 5G e pode lidar com as altas frequências usadas nas redes, consumindo menos energia e ocupando menos espaço do que outros materiais de chip.

“O que temos aqui hoje já daria para começar, sem precisar de mais investimentos. Temos know how e as máquinas compatíveis com essa tecnologia. Com mais investimentos, conseguiríamos avançar em dispositivos mais complexos da estrutura 5G”, afirma Pamieri.


Liquidação e prejuízos
O decreto assinado em dezembro pelo presidente Jair Bolsonaro autoriza a liquidação do Ceitec e a absorção por organizações sociais (OS), das suas atividades direcionadas à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico e à inovação em microeletrônica. A dissolução da empresa havia sido aprovada em junho pelo Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), colegiado formado por ministérios e bancos públicos, além da Presidência da República.


Isso não significa, necessariamente, a extinção da empresa. Em setembro, o jornal “O Estado de S. Paulo” teve acesso a um relatório do Tribunal de Contas da União que apontava não haver argumentos suficientes para a extinção do Ceitec. Segundo a reportagem, trocas entre membros do grupo responsável por avaliar a empresa pública resultaram em decisão enviesada e desequilibrada. O TCU tomou conhecimento disso e pediu acesso aos estudos realizados sobre a Ceitec.


Procurado, o TCU disse que o processo, de relatoria da ministra Ana Arraes, está restrito às partes e não há documentos públicos. Sobre o relatório obtido pelo Estadão, afirmou que o documento “não é uma decisão do TCU, trata-se de posicionamento da unidade técnica que ainda será apreciado pelo relator e pelo plenário.”


Em paralelo, o PDT ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) que pede a suspensão da privatização do Ceitec e outras cinco empresas, entre elas a Casa da Moeda. Segundo o partido, a venda dessas empresas não pode ser feita por meio de decretos e resoluções, mas por lei específica aprovada pelo Congresso Nacional.

“É um ato unilateral do presidente, abaixo da lei. Se ela (empresa estatal) foi criada por uma lei, o Congresso deveria extinguir a lei para poder a empresa ser liquidada”, afirmou Lucas de Castro Rivas, advogado do PDT.


De acordo com ele, se o Supremo disser que o decreto é inconstitucional, o governo terá de mandar a lei para o Congresso. E se a decisão do STF for de que o governo pode fazer a dissolução por decreto, “o Congresso ainda terá a prerrogativa de suspender esses decretos por meio de decretos legislativos”, diz.


“É preciso achar uma solução para que o Brasil mantenha essa infraestrutura. A forma pode ser aprimorada e é importante que seja o mais eficiente possível. Não somos contra uma eventual privatização, mas não podemos simplesmente fechar e vender as máquinas. Isso é um enorme prejuízo para o país”, afirma Jacobus Swart.


Felipe Oliveira – Colaboração para Tilt, em São Paulo.


Foto – Ceitec, estatal brasileira que produz semicondutores e chips para diferentes segmentosImagem – Reprodução/Ceitecsa.